v. 5 n. 14 (2025): Decolonialidade antropofágica: desobedecer a matriz de poder é possível?
A cultura ocidental começa com o patriarcado há cerca de 7000 anos atrás, sistema político que se contrapõe ao matrístico, em que a mulher, em vez do homem, liderava as comunidades nascentes – veja mais detalhes no meu artigo da Cactácea número 04, As origens do patriarcado segundo Humberto Maturana < https://rgt.ifsp.edu.br/ojs/index.php/revistacactacea/article/view/42/41 >.
O ódio do sistema patriarcal, ou dos homens, que veio substituir o matrístico é explícito desde o seu surgimento. Eva – ou Hawwa – é a causadora de todas as desgraças do homem Adão, desde o início: desobediente, curiosa, rebelde, insubmissa, que ouve e se deixa afetar pelos outros – no caso bíblico, o outro é a cobra, que a instiga a desobedecer criando espaço epistemológico para uma outra vida – é uma metáfora para tudo o que era temido pelo novo poder que se estava estabelecendo.
O patriarcado foi, e é, tão amplo que tomou o planeta inteiro. Vemos sua consolidação a partir dos registros da Mesopotâmia sobre seus mitos, aproximadamente 3000 anos atrás, com a figura de Lilitu ou Lilith, um demônio feminino sedutor e perigoso aos homens. Na Babilônia, é Ardat-Lili; na mitologia Grega, temos as Lâmias, as Empusas, Hécate; na Hindu, as Rakshasis e as Yakshinis; na Judáico-Cristã, Naamah, Succubus; na Árabe, Al-Uzza, Qarina; na Eslava, as Willis; na Africana, Oyá ou Iansã; na Japonesa, Yuki-onna; na Yanomami, a mulher cobra; na Kayapó, temos uma mulher que desobedecendo as regras libera a noite no mundo. Em todas as mitologias do planeta vemos traços de um ódio ancestral pela mulher desobediente, problematizadora e que traz sempre alterações indesejadas ao seu povo. Essa digressão foi só para situar o alcance, a solidez e a tradicionalidade do sistema patriarcal que, a meu ver, se confunde com a matriz de poder que impera no planeta ainda hoje e que se resume ao fundamento e á sustentação do autoritarismo: a obediência.
E a decolonialidade o que tem a ver com isso? – talvez você esteja se perguntando. Oras, colonialidade é um termo que significa etimologicamente ocupar, assentar, cultivar. Como é feito o cultivo de plantas da cultura européia? Em primeiro lugar, a terra é roçada, ou seja, tudo o que se encontrava no solo é destruído até se chegar à terra nua. Daí a terra é sulcada, criam-se marcas profundas no solo e então a semente escolhida é cuidada para que germine e se desenvolva do jeito que queríamos que se desenvolvesse. Daí, outras sementes são recolhidas desta plantação para que a reprodução do mesmo plantio ocorra novamente. E a partir daí, o joio é separado do trigo e só o trigo obediente prevalece reproduzindo a continuação da mesma cultura estática e milenar.
Portanto, a colonialidade não é um sistema que só foi adotado nas colônias: é a definição do próprio sistema patriarcal em que há autoridades masculinas, os patriarcas, que mandam os obedientes a reproduzirem seus desejos. Perceba que sem obediência esse sistema desmorona. E o que os patriarcas mais temem? A mulher, pois só ela tem o poder de gerar seres humanos. Tudo desaparece se não houver filhos. E se houver filhos, eles que sejam obedientes.
Por isso que nós, filósofos e filósofas decoloniais, insistimos na desobediência – veja mais nos meus artigos na Cactácea número 5, Resenha do ensaio de Walter Mignolo: “Desobediência epistêmica. Retórica da modernidade, lógica da colonialidade e gramática da descolonialidade”, < https://rgt.ifsp.edu.br/ojs/index.php/revistacactacea/article/view/47/52 > e número 7, Decolonialidade antropofágica: uma possível gramática para a ruptura com a colonialidade, < https://rgt.ifsp.edu.br/ojs/index.php/revistacactacea/article/view/68/75 >.
O temor dos patriarcas já foi inscrito no mito de Eva como uma profecia para o seu fim: pela desobediência abrem-se as portas para uma nova realidade. Aprendamos como desobedecer de maneira construtiva.
Sandro Adrián Baraldi