Sobre a Revista
Expediente
A Revista Cactácea - Educação, Filosofia é uma publicação eletrônica online do IFSP Câmpus Registro de periodicidade quadrimestral (3 edições por ano).
Equipe Editorial
Profa. Dra. Ofélia Maria Marcondes
Prof. Dr. Sandro Adrián Baraldi
Ano de Lançamento
2021
Objetivo
Contribuir para a divulgação e a visibilidade de autores preocupados com críticas sociais, com a difusão do pensamento e da análise dos fenômenos ligados à formação humana e promover amplo debate crítico entre diferentes áreas do conhecimento humanístico tanto no que se refere à filosofia e à educação como cultura, literatura, ciências, em busca de fomentar um diálogo interdisciplinar.
Justificativa
Em um mundo em que prevalece o pensamento acrítico, a obediência sem questionamento, a banalidade do mal, a "imunização da manada", vemos necessidade de apontar rupturas epistêmicas para rumos mais humanos não especistas. Cremos que esta astronave, o planeta Terra, conta com uma tripulação - humana e não humana - que precisa urgentemente reencontrar seu equilíbrio. A única maneira de reverter esse processo insano e destrutivo é por meio de narrativas que valorizem e revalorizem aspectos sociais não destrutivos, hoje em franca decadência.
URL
https://rgt.ifsp.edu.br/
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Edição Atual

A colonialidade é uma mentalidade, ou seja, se autoreproduz constantemente enquanto microações são executadas. Assim como sugere Foucault, em A microfísica do poder, o poder é exercido por um soberano que ordena sequências de eventos sustentados por uma rede de relações estratégicas combinadas e distribuídas no grupo social – os “obedientes”. Dessa forma o poder tem uma ação capilar que permeia toda a sociedade. Tecnologias invisíveis garantem certas atividades e reprimem outras, desta feita, quando estas relações preferidas se tornam automáticas, produzem saberes, discursos, subjetividades. E então um certo tipo de poder se sustenta automaticamente, se autorreproduzindo constantemente. É assim que a colonialidade funciona.
Vamos então definí-la. Penso que o modo mais prático e intuitivo foi classificado por Walter Mignolo[1]: a colonialidade é uma visão eurocêntrica racional marcada pela teopolítica e pela egopolítica. A teopolítica é derivada do pensamento cristão em que as “almas”, ou “razões”, são superiores ao corpo; e a egopolítica deriva de um narcisismo patológico e infantil que estrutura a mente. Assim fica fácil imaginar o que se encontra no espaço intelectual e idealista da teo e da ego políticas. O que está no intangível, no imaterial, lhe pertence. A alma, a superioridade de alguns seres, a civilização, a matemática, o racional, o pensar, o conhecimento, o universal, etc., etc., etc. Todos esses elementos são utilizados para justificar um modo de lidar com o material, o tangível. Exalta-se a razão, o pensar, em detrimento do corporal; proclama-se o universal sobre o contextual; eleva-se o egocentrismo contra o coletivismo. Tudo unido por uma religião em que o patriarca supremo tudo vê, tudo pode, está em todo lugar. Todos são o seu rebanho; tudo são os seus recursos. Sem exceção se apropria de tudo e de todos. E mimeticamente se reproduz esse “paradigma” em todas as famílias. Esse é o modo de pensar colonial.
Mas além de ser uma forma de ver o mundo, exige a conversão. Ou se aceita e segue suas regras, ou se é destruído. Isto porque é conveniente economicamente: o rebanho é escravo, a mulher serve ao propósito de aumentá-lo; o homem, como soldado, toma os recursos dos outros e enriquece a hierarquia patriarcal. Tal qual descrito no Deuteronômio, livro bíblico do Antigo Testamento em que Deus faz um pacto com os escolhidos para exterminar os não-escolhidos, “tu [o escolhido] as combaterás [as tribos não-escolhidas] até ao extermínio. Não farás aliança com elas nem as tratará com compaixão”[2]. É um discurso antigo, infelizmente ainda onipresente.
Não é complicado, portanto, escolher onde aplicar a desobediência: em tudo o que não for corporal e contextual. Ainda conforme Mignolo, a “corpopolítica” e a “geopolítica”, o tangível, o material, são o que deve ser levado em conta para organizar as microações. O que sentimos, o que desejamos, está muito explícito quando se refere à corporalidade. Não precisamos de autoridades que nos digam o que devemos sentir e desejar. É explícito, basta prestar atenção ao próprio corpo e ao entorno. Parece difícil porque somos construídos psiquicamente com um superego fortíssimo, uma fonte de autoritarismos interna que nos diz sempre como é adequado nos comportarmos. Vivemos em um ambiente de “influencers” que nos dizem como nos vestir adequadamente, nutricionistas que nos ordenam como comer certo, médicos que negam as dores que realmente sentimos e nos dizem quais as dores que devemos sentir, porque sempre estamos equivocados e inadequados, não somos bonitos nem feios o suficiente, estamos sempre gordos ou magros demais, nosso comportamento é alegre ou emburrado demais. Enfim, o fato é que perdemos o contato com a realidade concreta, material. E agora, para coroar a insuficiência, temos a Inteligência Artificial (IA) que veio para substituir o que pensamos. Nem isso somos mais capazes de fazer.
Rosa Parks, no ano de 1955, se recusou a ceder seu lugar no ônibus a um homem branco. Foi fichada pela polícia porque estava cometendo um crime grave e essa microação, deu início a uma sequência inesperada de eventos que culminaram na Suprema Corte Norte Americana e que deu origem à lei de antissegregação racial em transportes públicos. É evidente que a pequena e corajosa ação de Rosa foi o estopim de uma injustiça que há muito tempo estava acontecendo, mas ela prova que nunca sabemos qual imperceptível ação ousada dá start a mudanças imensas nem pensadas a princípio.
O apelo é que abandonemos parcialmente essa montanha de regras, nos voltemos para fora e ousemos interferir no estabelecido. Não para dentro, porque o corpo é uma relação com o exterior. Não existe corpo dentro, a comida, o ar, a água, o calor, vêm de fora. Só temos consciência porque há um corpo em um meio, portanto, o corpo se constitui de fora para dentro e não ao contrário, como queria Descartes.
Sandro Adrián Baraldi
[1] Mignolo, Walter. Desobediencia Epistémica. Retórica de la modernidad, lógica de la colonialidad y gramática de la descolonialidad. Buenos Aires, Argentina: Ediciones del Signo, Colección Razón Política,2010.
[2] SEVERINO, Antônio Joaquim. Filosofia. São Paulo: Cortez, 1994, p. 46.
